Há muitos anos que me questiono, tendo nós tanto conhecimento e recursos hoje em dia, como é que tantas crianças e adultos vivem na pobreza, muitos mesmo em pobreza extrema ou porque parecemos continuar impotentes face ao aumento das desigualdades ou outros assuntos que nos deveriam pôr a mover montanhas, tais como a crise climática. Lembro-me, no início da minha carreira, de perguntar a um professor de universidade inglês:
- Vocês têm institutos especializados, departamentos dedicados à infância, investigação social inovadora, planos de ação com orçamentos dedicados, etc, etc. Como é que a situação da infância no Reino Unido é das piores entre os países mais ricos do mundo?*
Ele sorriu e respondeu de modo algo sarcástico:
- Nós não gostamos muito de crianças.
*Em 2008, a UNICEF publicou o Report Card 8 dedicado à pobreza infantil nos países ricos, colocando o Reino Unido no último lugar da tabela comparativa.
De facto, nós vivemos numa época privilegiada. Temos hoje, mais que nunca, conhecimento sobre todas as áreas que afetam o ser humano ao nível físico, psicológico, espiritual, do funcionamento do cérebro ou do impacto que as experiências adversas na infância têm ao longo da vida (1). Temos medicina e tecnologia avançada, capaz de responder a desafios inimagináveis, mas também os recursos para erradicar a fome e a doença, para adotar legislação, políticas e programas com um impacto efetivo na situação das crianças, para estabelecer e garantir serviços de qualidade e para reverter os efeitos climáticos. Temos metodologias de formação inovadoras. Somos capazes de transmitir conhecimento e de transformar crenças socialmente enraizadas. Em suma, temos tudo ao nosso alcance para mudar a sociedade e salvar literalmente a humanidade. Portanto, o que nos impede de o fazer?
Em 2008, no seu discurso no Dia dedicado à memória de Martin Luther King, Obama falou repetidamente de um “défice de empatia” (2).
“A unidade é a grande necessidade do momento - a grande necessidade deste momento. Não porque soe bem ou porque nos faça sentir bem, mas porque é a única forma de superarmos o défice essencial que existe neste país.
Não estou a falar de um défice orçamental. Não estou a falar de um défice comercial. Não estou a falar de um défice de boas ideias ou de novos planos.
Estou a falar de um défice moral. Estou a falar de um défice de empatia. Estou a falar de uma incapacidade de nos reconhecermos uns nos outros; de compreendermos que somos o guardião do nosso irmão; que somos o guardião da nossa irmã; que, nas palavras do Dr. King, estamos todos ligados por uma única veste do destino.
Temos um défice de empatia quando continuamos a enviar os nossos filhos para os corredores da vergonha - escolas nos cantos esquecidos da América onde a cor da pele ainda afecta o conteúdo da educação.
Temos um défice quando os diretores executivos ganham mais em dez minutos do que alguns trabalhadores ganham em dez meses; quando as famílias perdem as suas casas para que os credores tenham lucro; quando as mães não podem pagar um médico quando os seus filhos adoecem...".
Esta semana tive o privilégio de seguir de perto os trabalhos de um comité internacional que monitoriza a implementação da única convenção a nível mundial para a proteção das crianças contra os abusos e a exploração de natureza sexual. Havia um documento importante na mesa, a ser adotado. Era a quarta reunião em que se discutia o mesmo e a discussão, mais uma vez, estava acesa e o debate parecia pender para uma tendência mais conservadora. A dada altura, um dos membros do comité, que representa um país membro, pediu a palavra e, com a voz forte e calma que o caracteriza disse:
- Caros colegas, lembremo-nos do nosso papel aqui. Hoje, não podemos falar enquanto advogados nem representantes de um sistema. Tal como preconizado pelas regras deste comité, nós fomos escolhidos das mais altas esferas dos nossos governos enquanto peritos de direitos das crianças, para defender os seus interesses. Acima de tudo, nós estamos aqui para proteger as crianças, não os sistemas legais.
Já estava emocionada com a discussão, mas naquele momento, fiquei arrepiada. Depois da sua intervenção, outros membros do comité ousaram esquecer que representam governos e que acima de tudo devem fazer o melhor para proteger os interesses das crianças. Mas, talvez mais importante ainda, aqueles profissionais ousaram mostrar as suas emoções, apelaram aos colegas para que tentassem colocar-se na pele das vítimas e imaginar como seria viver toda uma vida com as consequências de abusos sexuais vividos na infância. Houve até uma senhora que ousou dizer: “eu tenho uma filha, não consigo sequer imaginar o que sentiria se semelhante experiência lhe acontecesse.”
Quis agradecer pessoalmente a cada uma daquelas pessoas pela sua coragem, por nos lembrarem que no nosso trabalho, estamos sempre a falar de crianças, de um ser humano com sentimentos, emoções, pensamentos, vontades e dores próprias. Toda esta sessão plenária fez-me pensar na importância da empatia na política. Tudo o que se decide em termos políticos tem um impacto ao nível das populações e do mundo natural. Tudo! Tudo o que se decide em termos políticos tem um impacto pessoal, logo, é preciso trazer a empatia para a política. É preciso aprendermos a tomar decisões também baseadas nos sentimentos, nas emoções, na empatia, na compaixão e, até, no amor. Porque seremos piores profissionais, se pensarmos primeiro na pessoa e depois no sistema? Em que mundo é suposto desligarmo-nos das nossas emoções e adotar políticas que têm um impacto na saúde, economia familiar, educação, ambiente e outras áreas, sem pensarmos nas pessoas que serão afetadas?
Eu nunca consegui separar a emoção do meu trabalho. Nas discussões técnicas, eu não vejo as dificuldades de um sistema legal, político ou operacional; eu vejo apenas o imperativo de proteger a criança e de melhorar a sua vida. Vejo apenas a necessidade de compreender como podemos reforçar a legislação, melhorar a qualidade dos serviços, apoiar os profissionais que trabalham com as crianças e garantir os seus direitos no máximo das nossas possibilidades como defendido na Convenção sobre os Direitos da Criança.
Olho à minha volta e vejo o medo nos olhos do adulto, o medo de mostrar emoções por causa do medo de parecer frágil, de ser julgado, de ser considerado menor. O medo de dizer em voz alta: as crianças precisam de amor e eu recuso-me a assinar o que quer que seja que garanta menos que o amor, a proteção e a atenção que todas as crianças precisam, merecem e têm direito.
Eu choro em quase todas as reuniões deste comité que sigo. Choro, porque em cada estatística apresentada eu vejo o rosto das crianças. Eu choro porque quero ver adultos corajosos que batam o punho na mesa contra a injustiça, mas demasiadas vezes teimam em não o fazer. Eu choro por uma sociedade que tem medo de amar, de sentir, de se emocionar e de dizer em voz alta « nós somos amor e só o amor nos pode salvar ».
Amar faz de mim uma melhor profissional. Eu sei-o.
Esta semana aprendi muito sobre o valor da empatia no trabalho. Não importa apenas ousar dizer “eu quero acima de tudo proteger as crianças”, é preciso também ouvir o lado do outro. Porque defendes tu o sistema antes das crianças? O que te move? Explica-me, quero perceber a tua opinião. Será, finalmente, nessa confrontação que nos poderemos encontrar e que sentiremos empatia um pelo outro. Será nesse espaço, e só nesse, que finalmente poderemos salvar a humanidade.
Eu vou continuar a trabalhar com o coração, a sentir-me triste pelas crianças que desconheço, mas que sei que sofrem, a indignar-me perante a indiferença, a amar loucamente e a tentar - como o colibri - a dar, da única maneira que eu sei, de corpo e alma, o meu pequeno contributo.
(1) Para conhecerem mais sobre o impacto das experiências adversas na infância, vejam o trabalho da OMS em: https://www.who.int/teams/social-determinants-of-health/violence-prevention/inspire-technical-package
(2) Lakoff, George. (2008, 2009) The Political Mind. A cognitive scientist’s guide to our brain and its politics. Penguin Books